Antônio Conselheiro é revivido após 180 anos


12/3/2010 Clique para Ampliar
Reprodução de imagem das ruínas da Comunidade de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro no sertão da Bahia. É considerado o maior movimento popular do Brasil 
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Bisneto do beato é cumprimentado pelo teatrólogo, José Celso, que montou espetáculos sobre Canudos 
FÁBIO LIMA (14/11/2070)Mudanças na percepção e na apropriação das memórias do beato Antônio Conselheiro


Fortaleza. Quando começaram a circular as primeiras notícias sobre a investida do Exército brasileiro contra uma comunidade religiosa baiana que desafiava a Igreja Católica e a República recém-estabelecida, o povo da então Vila do Campo Maior de Quixeramobim deve ter tido muito do que se envergonhar. Pois logo um filho da terra, de família tradicional, tido até então como homem civilizado, dedicado à família e temente a Deus, era apontado como o líder espiritual daquela turba de degenerados, messias doentio cujas prédicas incitavam a desobediência civil e anunciavam o fim dos tempos.


O quixeramobinense Antônio Vicente Mendes Maciel havia se tornado o fanático Antônio Conselheiro, líder religioso do Arraial de Belo Monte, também conhecido como Canudos.

Ao completar 180 anos de nascimento, é possível verificar mudanças na percepção e na apropriação das memórias sobre o beato. Canudos hoje é identificado como o maior movimento popular do Brasil, difamado e aniquilado por um Estado indiferente às mazelas que assolavam o sertão nordestino. Por sua vez, Conselheiro é visto como um mobilizador de utopias, místico imbuído pela busca de uma comunidade devota e solidária, segundo os princípios dos primeiros cristãos. Com tal virada perceptiva, Antônio Conselheiro hoje pode ocupar o "status" de cidadão ilustre de Quixeramobim.

Tanto que, hoje e amanhã, a ONG Instituto do Patrimônio Histórico de Quixeramobim (Iphanaq) realiza uma edição especial do Conselheiro Vivo, com o tema "Cultura e Transformação". Realizado desde 1997 pelo então Movimento Antônio Conselheiro, que posteriormente deu origem ao Iphanaq, o encontro tem como objetivo debater a memória do beato e atualizá-la a partir de temáticas sociais. De acordo com os organizadores, este ano o evento busca realizar intervenções artísticas e propostas pedagógicas no intuito de criar materiais de memória envolvendo o universo social Conselheiro/Canudos.

Para isso, há duas semanas o artista visual Alexandre Veras vem ministrando uma oficina de vídeo para 15 alunos da Escola Pública Luiza Távora, de Quixeramobim, dentro do Projeto Interações Estéticas. O projeto é resultado de edital da Fundação Nacional das Artes (Funarte) e desenvolvido em conjunto com o Ponto de Cultura Patrimônio Vivo, da ONG Iphanag. Os participantes têm como missão entrevistar moradores da cidade, questionando-os sobre as diversas impressões dos conterrâneos de Conselheiro.

"Queremos trabalhar com a comunidade de forma a não apresentar uma história como relatório ou um resgate do legado de Antônio Conselheiro, mas fazer uma ponte entre a trajetória deste e questões contemporâneas dos seus conterrâneos, evidenciando esse Conselheiro ´vivo´. Nós queremos trabalhar Quixeramobim como um lugar de memória desse personagem humano: o lugar onde ele nasceu, teve sua formação e travou conhecimento com Padre Ibiapina e o historiador Antônio Brígido", explica o mestre em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e também um dos organizadores do encontro, Danilo Patrício.

Hoje, os depoimentos serão projetados nas paredes do sobrado onde o beato nasceu, tombada pelo Patrimônio Estadual. Já no sábado, será iniciada oficina de fotografia também para alunos de escolas públicas, que busca registrar lugares de memória que perpassam a trajetória de Antônio, antes de virar Conselheiro. A oficina, que terá continuidade após o evento, é ministrada pelos fotógrafos Igor Câmara e Weynes Matos.


FIQUE POR DENTRO

Origem do beato


Antônio Vicente Mendes Maciel nasceu no dia 13 de março de 1830. Como não conseguiu tocar o comércio do pai, trabalhou como professor, caixeiro, escrivão e rábula (advogado sem diploma). Atribui-se à traição da esposa o motivador de sua vida errante. Percorreu os sertões reformando igrejas e cemitérios, além de dar orientação espiritual, que lhe valeu o apelido de Conselheiro. Muitos sertanejos e escravos libertos passaram a segui-lo. Em 1893, o grupo se estabeleceu numa fazenda abandonada no norte da Bahia, região conhecida como Canudos. O crescimento do povoado atraiu a ira dos fazendeiros e do clero. Em 1896, após um conflito com policiais, o Governo Federal enviou tropas para massacrar o povoado, fato ocorrido só em 5 de outubro de 1897. O corpo de Conselheiro estava enterrado na igreja, morto por causas até hoje não definidas.

TESE DE DOUTORADO

Representações do beato em discussão


"... E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão em que se apoia o passo tardo dos peregrinos". Esta é a descrição que Euclides da Cunha faz de Antônio Conselheiro no monumental "Os Sertões", livro que registrou a campanha militar contra o Arraial do Belo Monte.

Mas, a despeito da imagem negativa que os vencedores da Guerra de Canudos e a ideologia vigente buscaram imprimir, a figura de Antônio Conselheiro permanece viva no imaginário social a partir das mais diversas manifestações. Este é o mote da tese de pós-doutorado "Retratos do Conselheiro: as múltiplas faces do beato de Belo Monte", da professora e escritora Ângela Gutiérrez.


Novas visões


Na segunda metade do século XIX, a atuação de beatos e penitentes era associada à imagem de um mundo retrógrado, de pessoas afeitas a crendices e fanatismos. Mas não se atentava para a fragilidade e a ausência da República nos rincões do Nordeste brasileiro. Por sua vez, a Igreja Católica se via ameaçada diante da possibilidade de novas vertentes religiosas fora de sua influência e autoridade. Vitimados pelos desastres provocados pela estiagem, Canudos pode ser considerada uma tentativa de estabelecer uma comunidade social e religiosa ideal, cuja grandeza foi diretamente proporcional aos esforços para aniquilá-la.

"O que se pode perceber nos estudos sobre o tema é uma saída da perspectiva dos vencedores para a dos vencidos. Pesquisadores como José de Calazans, Abelardo Montenegro e Nertan Macedo foram muito importantes ao reunir novos dados e depoimentos de sobreviventes. Canudos funcionava a despeito das ações governamentais e de todas as marcas do progresso que o Estado tentava imprimir", avalia Gutiérrez.

Segundo a pesquisadora, que está em fase de conclusão do trabalho, o objeto de pesquisa são os retratos ficcionais do Conselheiro como personagem do romance canudiano. Ela observa que é possível perceber, não apenas nos estudos acadêmicos, como também na literatura, no teatro, nas artes plásticas, nos folhetos de cordel, no cinema, na xilogravura e em outras manifestações, um outro olhar sobre o legado conselheirista.

"O que se percebe é a busca de uma reinterpretação do beato que, com sua postura asceta, seus trabalhos na reforma de templos religiosos e na acolhida sem distinção a quem o procurava em sua comunidade, pôde acenar com a possibilidade de uma vida mais fraterna".

Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=749528


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